A chamada “lei de pureza alemã” definia a composição da cerveja unicamente com água, malte, lúpulo. Aparentemente é uma lei muito antiga que preza pela qualidade da cerveja. Mas na verdade esse é um grande mito cervejeiro, veja os motivos abaixo.
1º) A Alemanha não existia em 1516
A Alemanha é um país criado somente em 1871, quando sob a liderança da Prússia formou-se o Império Alemão. A Baviera, de onde é originária a tal lei, foi um dos estados que se juntou ao Império nesse momento. Eram dezenas de reinos independentes com diferentes línguas, moedas, leis e costumes. Portanto, a lei só valia numa pequena porção do que é hoje a Alemanha.
2º) A Alemanha só adotou a “lei da pureza” em 1906
Somente nesse ano a lei passou a ser válida em toda Alemanha, até então somente a Baviera adotava as normas.
3º) A preocupação não era a qualidade: a cerveja da maioria piorou
A real preocupação da lei não era exatamente a qualidade, na verdade essa era a menor das preocupações. Na época muito trigo e o centeio eram usados na fabricação de cerveja, o que encarecia o pão e estava gerando constantes revoltas populares. Assim, a lei da pureza reservou a cerveja feita exclusivamente de cevada, considerada pior na época, para o povão e a cerveja contendo trigo e centeio, tida como mais refinada, destinou-se somente à nobreza. Ou seja, pelos critérios da época, a cerveja para a maioria da população piorou com essa lei.
4º) A restrição de ervas e condimentos visava o controle social
Outro objetivo da lei era restringir o uso de ervas e condimentos na fabricação de cerveja, muitas delas com efeitos alucinógenos e/ou psicotrópicos. Vivia-se a efervescência religiosa que redundou na Reforma Protestante e tentava-se “moralizar” os costumes proibindo a adição de qualquer substância alteradora da consciência nas cervejas, coisa comum quando se usavam os populares gruits (mix de ervas e temperos) nas receitas. A Bélgica, por exemplo, seguiu fazendo amplo uso desses ingredientes, gerando cervejas bem mais complexas e originais.
5º) A Igreja e o Duque monopolizavam o lúpulo
Autorizando somente o uso do lúpulo o Duque da Baviera beneficiava os mosteiros, que tinham direito exclusivo na produção dessa flor, ou seja, a Igreja passava a ter controle sobre quem fazia cerveja, podendo regular a produção e o consumo. Além disso, alguém adivinha quem detinha o monopólio do beneficiamento de lúpulo da região? O próprio duque! Bem conveniente essa preservação da “qualidade” não é?
6º) A Alemanha atual não segue a “lei da pureza” de 1516
Desde 1993 uma Lei Provisória da Cerveja Alemã permite o uso de trigo e de cana-de-açúcar no preparo da bebida, além de incorporar a levedura (ilustre desconhecida e, portanto, ignorada na lei original) como ingrediente e permitir outras formas de maturação. Ou seja, a dita “tradição” já sofreu uma considerável alteração.
Então porque a “lei da pureza” é tão admirada?
Basicamente porque no Brasil e na maior parte do mundo as cervejas estão corrompidas pela adição de milho, arroz e outros cereais com a única intenção de baixar custos e aumentar lucros. A qualidade caiu vertiginosamente e milhões e milhões de pessoas acabam bebendo “gato por lebre”, ingerindo suco de milho (ou arroz na Budweiser…) como se fosse cerveja.
Diante disso a “lei de pureza alemã” que define a composição da cerveja unicamente com água, malte, lúpulo e levedura nos parece um critério de qualidade. Mas ela foi feita em outro tempo e com outras motivações. Não se pode atribuir ao passado intenções e sentimentos que não faziam parte da época e de seus valores. Esse “pecado” os historiadores chamam de anacronismo. No Brasil ele é agravado por uma mentalidade colonizada, o tal “complexo de vira-latas”, que facilmente leva as pessoas a “pagarem pau” pros gringos:
“- Que admirável a preocupação “alemã” com a qualidade! Que povo evoluído!”.
Enfim, temos uma lei que não é alemã, que não é de 1516 e que não estava preocupada com a qualidade. Uma “lei de pureza” que não passa de mito, da mesma forma que a “pureza ariana” defendida na Alemanha nazista, um mito sem base científica alguma.